O horror no áudio (não) visual: A potencialidade dos podcasts de horror na criação de uma nova experiência do gênero
[Trabalhos de faculdade]
O horror e o som no cinema têm histórias que começam praticamente juntas, o que pode ser observado nos filmes Drácula (Tod Browning) e Frankenstein (James Whale), ambos lançados em 1931, menos de 5 anos depois de O Cantor de Jazz , tido como o primeiro filme sonoro. Embora existam antecedentes do gênero no cinema mudo, o horror é primordialmente baseado no som e é um espaço muito exploratório de possibilidades dessa tecnologia (Hutchings). O som, desde foleys até leitmotivs e músicas dissonantes, é um elemento muito importante para o gênero e é grande responsável pela criação da tensão e da curiosidade do espectador até que a câmera finalmente vá descobrir de onde está vindo (Chion). A estética, narrativa e potencial próprios do horror no cinema (Euritt, McMurtry) traz reflexões acerca da potencialidade da experiência do horror através do som puro em podcasts e como essas mídias podem criar uma experiência única e inovadora do horror e também uma maneira diferente de contar histórias que poderiam ser limitadas pelo aspecto visual.
O uso do áudio como forma de representar narrativas não é uma exclusividade do século XXI, na década de 80, o canadense já lançava o programa Nightfall (1980), cuja narrativa não gira em torno do sobrenatural e sim da evocação de imagens reais, nojentas e desconcertantes. No entanto, a dinâmica de rádio e a tecnologia da época oferecem possibilidades diferentes dos podcasts atuais, e sua experiência do horror não é a mesma, embora utilizem do mesmo recurso.
O primeiro podcast ficcional narrativo de horror conhecido em maiores proporções foi Welcome to the Night Vale (2012), mas outros exemplos podem ser observados como The Magnus Archives (2016) e The Darkest Night (2016). O maior diferencial entre essa mídia e sua antecessora nos rádios é a sua tecnologia. Em seu ensaio “Adeus ao cinema”, Castanheira comenta a respeito do espetáculo visto no cinema que coloca tecnologias de ponta, especialmente sonoras, em evidência, e também da transformação do filme em um arquivo, e como essas duas coisas impactam negativamente a experiência e a produção cinematográfica. Para uma mídia no podcast, no entanto, é exatamente isso que aprimora e torna possível a sua experiência singular. Por estarem disponíveis em plataformas de streaming, os podcasts existem para serem ouvidos em qualquer lugar, a qualquer hora, ao contrário de um programa de rádio, o que torna a experiência muito mais íntima (Euritt, McMurtry). Além disso, a imersão necessária para a provocação dos afetos do horror pode ser aumentada através de recursos como o áudio binaural, visto em Nightfall.
Ainda a respeito da imersão, a construção de um ambiente sonoro no universo particular de uma pessoa que ainda está inserida no mundo real cria uma nova e única maneira de se experienciar narrativas de horror. Sem imagens, os programas de rádio e podcasts possuem uma escuridão, ou cegueira, e a capacidade de incorporá-la no meio visual real (Hand, Traynor). Ao mesmo tempo que tira o ouvinte da realidade, ele se mistura a ela e vice-versa, enquanto a narrativa toma forma na mente de quem escuta, os ruídos ao seu redor adicionam uma nova camada de realidade na história, e as imagens evocadas, uma camada de ficção na realidade, ainda mais se o podcast estiver sendo ouvido em um ambiente que remeta ao cenário criado (Euritt, McMurtry). A mesma coisa não acontece com filmes, no entanto, porque eles não abrem espaço para a realidade ao redor existir na sua experiência, é apenas depois que o filme acaba, quando é retirada a imagem e a mente se encarrega de reconstruí-las, que a realidade se torna assombrosa e a experiência deixa de ser um reflexo terceirizado e se torna íntima como é nas mídias de áudio.
Além da maneira de experienciar o horror ser diferente daquela oferecida pelos filmes, o formato de áudio traz recursos diferentes para a exploração de subgêneros que enfrentam dificuldades nas imagens, como é o caso do horror cósmico ou lovecraftiano. Esse subgênero diz respeito a um método de contar histórias e ao clima específico que pode ser observado em especial nos textos de H. P. Lovecraft. É um tipo de horror que explora a necessidade humana de definir tudo e o medo que o ser humano sente perante ao desconhecido e indescritível. Narrativas de horror cósmico focam no efeito causado e na criação de uma atmosfera e do “senso de pavor” – sentimento tido por Lovecraft como principal objetivo do horror –, e não no objeto desconhecido em si, e por isso opta por não trazer descrições objetivas, ou explicações. Para estudar esse subgênero, Harman usa o conceito filosófico de lacunas, que são a distância entre um objeto e a capacidade humana de descrevê-lo. De acordo com o teórico, expor o conteúdo desses textos de maneira literal o deturpa, pois ele não é a realidade em si, mas apenas uma construção da linguagem, e a concepção depende do contexto de cada um. Por esse motivo se torna quase impossível realizar esse subgênero no cinema, uma vez que, embora não precise ser realista, é uma mídia que usa imagens reais preexistentes como matéria prima. Nas palavras de Harman:
“E qualquer filme de The Colour Out of Space (1) não teria nenhuma escolha senão apostar em alguma versão específica do chiaroscuro e perspectiva. Alguns esforços cinematográficos seriam melhor sucedidos que os outros em capturar visualmente a noção bizarra de “chiaroscuro e perspectiva estão desajeitados/errados”, mas até no melhor caso, o máximo que poderíamos fazer seria aplaudir em admiração o grande esforço feliz do diretor. De modo geral, qualquer versão filmada de lovecraft falharia em capturar sua qualidade alusiva” (2) (2015)
Nos podcasts, no entanto, a retirada das imagens cria o espaço para essas lacunas e promove a construção de um visual que só existe dentro da cabeça do ouvinte e depende do seu contexto individual, se tornando uma mídia muito mais aproveitável para a exploração desse subgênero. Tal êxito pode ser observado em The Magnus Archives , que trata seus episódios como registros e depoimentos gravados pelo arquivista de um instituto encarregado de investigar acontecimentos sobrenaturais e inexplicáveis. Muitos dos eventos são relatados por quem os experienciou como indescritíveis, e é muito comum ouvir a frase “não sei como explicar isso” e receber descrições que embora contenham detalhes, falham em chegar em uma imagem completamente inteligível. Além disso, alguns episódios tratam sobre casos impossíveis de serem construídos por imagens, pelo menos dentro dos moldes do cinema clássico, como é o caso do episódio Upon the Stairs , que é sobre um homem cuja existência é ambígua.
Para o cinema de horror, o som é um recurso indispensável, de características próprias e um corpo narrativo tão bem definido que pode ser dissociado do seu acompanhamento visual e ainda manter seu corpo e efeito. O gênero oferece há quase um século a exploração da tecnologia sonora no cinema, e nos últimos anos essa relação se tornou ainda mais bilateral, com essas novas mídias e tecnologias proporcionando maneiras inovadoras de experimentação com o horror. Com suas características que promovem uma experiência muito mais íntima e singular, os podcasts vêm mostrando um enorme potencial na criação de um novo jeito de consumir, experienciar e criar o horror.
REFERÊNCIAS
- CARREIRO, Rodrigo - Sobre o som no cinema de horror: padrões recorrentes de estilo. Ciberlegenda, v. 1, n. 24, 2011
- WHITTINGTON, William - Horror sound design. A companion to the horror film, p. 168-185, 2014
- HANCOCK, Danielle; MCMURTRY, Leslie - “Cycles upon cycles, stories upon stories”: contemporary audio media and podcast horror’s new frights. Palgrave Communications, v. 3, n. 1, p. 1-8, 2017
- EURITT, Alyn; MCMURTRY, L. G - Immersive night: audio horror in radio and podcasting. Refractory: a Journal of Entertainment Media, v. 35, 2021
- CHION, Michel - O real e o reproduzido. In: A audiovisão: some imagem no cinema. Lisboa: Texto&Grafia, 2011
- CASTANHEIRA, J. C - Adeus ao cinema: o digital e novas arquiteturas de ver e ouvir. [no prelo]
- DUTRA, Daniel Iturvides - O horror sobrenatural de HP Lovecraft: teoria e praxe estética do horror cósmico. 2015